Histórias de Moradores de Votuporanga

Esta página em parceria com o Museu da Pessoa é dedicada a compartilhar o acervo de vídeos e histórias com depoimentos dos Moradores.


História do Morador: Hamilton Luiz Lima
Local: São Paulo
Ano: 06/08/2008

Vídeo: Carnes campineiras


Sinopse:

Descrição da família e seu envolvimento no comércio de carnes. A infância dividida entre os trabalhos do sítio e a escola. Os hábitos de consumo do passado. A vida interiorana no período de sua infância. As viagens para as cidades próximas, feitas por trem ou por jardineira. As tropas de boi e o trabalho em uma pousada de tropeiros. As mudanças para outras cidades do interior, até tentar a sorte em Campinas. O desenvolvimento do comércio de carnes. A adaptação em Campinas. A abertura do primeiro açougue e o desenvolvimento da atividade.

História:

IDENTIFICAÇÃO
Eu sou Hamilton Luiz Lima. Nasci no dia 1º de abril de 1950, em Fernandópolis, Estado de São Paulo.

FAMÍLIA
Meu pai se chama Juvenato de Oliveira Lima e minha mãe, Rosalina Teodoro Lima. São brasileiros, vieram da região de Ribeirão Preto, de Guará, Morro Agudo. Meus avós por parte de pai eram músicos e por parte de mãe, ele tinha um empório de secos e molhados. Meu pai era pecuarista, mexia com terra, com boi. Depois ele começou a trabalhar com carne, um pequeno açougue na região do Estado de São Paulo, Fernandópolis, Indiaporã. Tenho cinco irmãos. Trabalham no segmento do meu pai: o mais velho, o segundo e eu. Somos quatro homens e uma mulher. Um dos meus irmãos hoje tem uma fazenda em Mato Grosso, é pecuarista.

MIGRAÇÃO
Vim pra Campinas dia 20 de janeiro de 1970. Como todo brasileiro, sempre procura o melhor. Saímos de uma cidade pequena com o intuito de crescer. E assim foi feito. Campinas na época era uma maravilha, uma coisa singela, de grande respeito e foi por aí que nos agarramos aqui. Por sinal viemos em três. O mais velho, o Wilson, o segundo, o Ailton, e eu. Nós viemos com destino a São Paulo. Paramos aqui, ficamos por algum tempo. Eu fiquei e os outros voltaram.

CIDADES / INDIAPORÃ / SP
Eu morava no distrito onde eu nasci, que chama-se Indiaporã, na divisa do Estado de São Paulo, perto do Rio Grande. É uma cidadezinha pacata, pequena. Logo que meu pai se casou com minha mãe, foram pra lá. Compraram umas terras e foram ficando por ali. Era uma cidade realmente pequena. Meu pai chegou a ser sub-delegado e vereador na cidadezinha. Mas é uma cidade bem pequenininha, calma. Até hoje ela ainda é calma, por sinal.

INFÂNCIA
Éramos cinco e todos nós tínhamos uma ocupação. Nós tínhamos as terras e os mais velhos cuidavam dos bois e dos cavalos. Eu cuidava do terreno, das galinhas, das cabritas, essas coisas. O brinquedo era a escola e tarefas. Foi uma infância um pouco árdua. Trabalhamos desde cedo. Tínhamos responsabilidade com as criações e com os deveres do pai. Tínhamos que seguir as normas do que foi dito para o bom desenvolvimento da família. Normalmente, na vida de campo ou do interior, naquela época, havia uma hierarquia, vamos dizer, um certo respeito. Não tinha as brincadeiras como tem hoje. As brincadeiras eram a competição pra terminar mais cedo o serviço porque acabando mais cedo íamos nos banhar em um córrego, ou fazer uma caçada, íamos atrás de frutas nativas, como gabiroba, marmelo e pitanga. Era o tipo de brincadeira daquela época. Todo mundo que passou por aquela época, hoje pode se considerar um bom cidadão, de grande respeito, que tem disciplina e respeito pelo seu próximo.

COMÉRCIO
Opções não havia muitas, porque Indiaporã era pequena. Compras maiores eram feitas em Fernandópolis. Todo final de ano comprávamos uma roupa, um sapato. Hoje é diferente, mas antigamente era assim. Então se fazia compra uma ou duas vezes no ano, se muito. Normalmente, a família ia toda na cidade de Fernandópolis, que ficava a 25 quilômetros. Ia todo mundo. Era uma ocasião de festa. Fazíamos visita aos parentes e comprávamos uma troca de roupa, um presentinho pra um afilhado, essas coisas. Onde morávamos sempre teve vendas, pequenos comércios, tipo baiúca. Tinha o básico: arroz, feijão, sal, querosene, corda. Nunca íamos pra São Paulo comprar alguma coisa.

TRANSPORTE
Era muito difícil naquela época uma viagem do interior a capital. Era estrada, não era nem rodovia. Na época era terrível. Tinha o trem, mas era Maria-Fumaça ainda. Ele cortava São Paulo e ia até Presidente Vargas. Na época, o trem era um sufoco. O pessoal de hoje não agüentaria viajar naquilo. Mas era o veículo que tinha na época. E havia as jardineiras, que seriam os ônibus hoje. Jardineiras à gasogênio. Mas era difícil, estradas cheias de obstáculos.

RELIGIÃO
A família é católica. Meu pai tinha o sonho que um dos filhos se ordenasse padre. Eu mesmo tinha tudo pra ser padre, mas nada disso aconteceu. Hoje somos católicos, mas não muito praticantes.

ADOLESCÊNCIA
O único divertimento no interior eram as festas nos compadres. Havia muitas festas de Reis, Festa de Santo Antônio, São João. Havia também casamentos, esporadicamente. Não havia os clubes como hoje. Havia uma pracinha com o “footing”, uma bandinha tocando. Eram cidades pacatas na época.

TRANSPORTE
Pra nós, andar de trem era uma brincadeira. Não era sempre que acontecia, mas pelo menos uma vez no ano fazíamos um passeio de trem. Íamos pra Votuporanga, na casa dos meus avós, que moravam lá na época. Íamos de trem pra não ir de ônibus, porque sofríamos muito por causa das estradas ruins. As estradas iam cortando as fazendas. Pra ir em determinado lugar tínhamos que abrir as porteiras pra jardineira passar. Eram tão precárias as coisas... No trem os assentos eram de madeira. Existia uma primeira classe, na época. Sempre existiu mordomia... (risos) A primeira classe era almofadada, mas nós usávamos sempre a segunda classe, então era de madeira mesmo.

INFÂNCIA
Comecei a trabalhar criança, na verdade. Não tivemos infância como se tem hoje. Antigamente, a criança começava a andar e já havia a hierarquia dos filhos. Todo mundo tinha uma ocupação. Tinha que seguir aquilo. Eu passei as minhas tarefas para o meu irmão caçula, depois para minha irmã. Eram os afazeres da casa. Na nossa época todos aprenderam prendas domésticas. Todo mundo sabia se virar na cozinha. Todo mundo tinha que ajudar a mãe. Era assim. Brincadeiras havia poucas, como ir ao riacho, mas isso era, às vezes, até escondido. Os pais tinham medo de insetos, cobras, essas coisas perigosas. E realmente havia muitos. Eu acho que poucas pessoas tiveram uma infância tão junto à natureza como eu. Uma coisa verdadeira. Fui criado dentro de outra disciplina, com obrigações e responsabilidades pra ser um bom cidadão no futuro.

TRAJETÓRIA PROFISSIONAL
Eu comecei no comércio realmente, deveria ter onze, doze anos mais ou menos. Nessa época nós já tínhamos mudado pra Votuporanga, uma cidade próxima de Fernandópolis. Como meu pai já era do comércio tínhamos também uma pensão pra pouso de boiadeiro, pra tropeiro. Tínhamos um açougue e um bar, que na época dava as refeições para o pessoal. E eu trabalhava em um barzinho, um bolichinho que tinha entre uma coisa e outra. Já comecei a trabalhar ali no comércio.

TROPEIROS
Na época, os boiadeiros vinham de Mato Grosso. Fernandópolis e Votuporanga embarcavam os bois que iam para São Paulo. Para Anglo, pra Minerva, pra Swift e Armour do Brasil. Então vinham tocado mil, dois mil bois e os embarcavam nos trens pra vir pra capital. Normalmente, nessa comitiva havia 15, 20 peões. Eles vinham trazendo os alimentos do gado. O batedor vinha na frente e vinha já marcando as pousadas. O boiadeiro parava e a comitiva já estava lá esperando o pessoal chegar pra descansar e dar o rango. Eram 15 tocadores de boi pra mil cabeças de gado. Os ponteiros - um, dois - iam na frente, no meio os batedores e depois os da culatra que vinham pra não deixar escapar os bois. Fora os que já estavam na frente, aqueles que iam pra fazer a frente da comitiva.

TRAJETÓRIA PROFISSIONAL
Com 11 anos eu já estava trabalhando na baiúca. Servindo e agilizando. Tínhamos uma noção do comércio, de comprar e vender. Estava no sangue o sistema. Baiúca é um boliche, um boteco, hoje, um bar. Era um ponto de venda de secos e molhados. Eles chamavam de bolichinho. Uma baiuquinha. Um mini armazenzinho, vamos dizer. A ocupação era ajudar minha mãe na preparação dos alimentos, servir mesas e abastecer a geladeira. Naquela época, a geladeira era a querosene. Comecei a ganhar uns trocadinhos. Eu não tinha nenhuma poupança. Na época, não tínhamos noção disso, então eu guardava. Ia guardando uns trocadinhos. Acho que era cruzeiro, ou antes de cruzeiro - não me lembro do dinheiro na época. Eu juntava um pouco de dinheiro e comprava alguma roupa. Mas ir para a rua não podíamos; meu pai não deixava. Era todo mundo no cabresto ali. Com 15 anos, viemos pra São José do Rio Preto. Ingressei em um frigorífico de indústria e fui me aperfeiçoando na área da carne. Fiquei de 1966, 67, 68. Em 69, eu fiz o Tiro de Guerra em São José do Rio Preto. Nessa época, meus pais voltaram para o Mato Grosso, Aparecida do Taboado. E eu fique até 1969 em São José do Rio Preto. No final do ano, acertei a baixa do quartel e fomos pra Mato Grosso. Chegamos lá e a vida estava muito difícil. Foi aí que nós imigramos pra capital. Eu e meus dois irmãos. Aí começou a vida.

REFRIGERAÇÃO
Já existiam geladeiras elétricas, mas Votuporanga era uma cidade próxima da Fepasa, da linha do trem e estávamos realmente retirados. Naquela época não havia muita luz. Na nossa casa, por exemplo, não tinha luz elétrica. Nós tínhamos geladeira a querosene.

TRAJETÓRIA PROFISSIONAL
Eu trabalhava em uma indústria que se chamava Frigorífico Bandeirantes. Eles industrializavam os produtos da época: mortadelas, salames, conservas de lingüiças, defumados. Abasteciam o interior e jamais São Paulo. Era sempre para o interior. Porque era difícil o trânsito ainda em 67. Fiquei toda essa época em uma oficina de aprendizagem. Hoje você aprende o teórico e não o prático. Você tem noção do que é a coisa e não, vamos dizer, do trabalho, a disciplina, a responsabilidade, a tarefa pra você cumprir pra uma produção dentro do limite de horário. Então você dependia de certo sistema. Hoje você aprende o teórico. O prático só com os anos que você vai aprendendo, porque senão você nunca vai ser um profissional de acordo. Tudo que você aprende com carinho, com respeito, faz você crescer. Você aprende e no futuro você passará sempre pra alguém, como aconteceu comigo. Eu tenho certeza que muitas pessoas aprenderam muito comigo no meu trabalho. Aprendi a parte técnica de conhecimento profissional, de como lidar com a carne. O que fazer, como conservar, como industrializar, o processamento de embutidos de salame, lingüiça, mortadela, presunto. Aprendi a técnica de resfriamento e conservação dessas carnes.

MIGRAÇÃO
Campinas, naquela época, dava medo. Pra quem vem do interior dava medo. Estávamos em um lugar praticamente estranho, onde não tinha parente. E não tínhamos muito recurso financeiro e precisávamos arrumar rápido algo pra fazer. Foi difícil, mas conseguimos. Meus irmãos ficaram só um pedaço e foram embora, não agüentaram. Um foi pra São Paulo e outro voltou para o interior. Eu fiquei e logo em seguida me casei. Casei-me com 21 anos. Quando cheguei, na verdade, eu fui acolhido pelos parentes nossos. Depois fomos morar sozinhos. Nós três arrumamos uma casa e fomos morar. Logo em seguida, acho que menos de um ano, meus irmãos foram embora e eu fiquei. Nessa época já estava namorando e trabalhava em outro frigorífico. Era o Frigorífico Macuco. Foi nele que conheci a moça que é a mãe dos meus filhos. Eu falei: “Vou casar.” E pronto, casei. Eu morava no Bonfim, na Erasmo Braga. Campinas era o mesmo de hoje. Os bairros que naquela época eram centrais, no caso do Bonfim, São Bernardo. Lateralmente, Cambuí, esse centro aqui, enfim é o mesmo daquela época. Nada mudou. Quer dizer, o que mudou hoje foi o periférico. Hoje ficou enorme, cresceu muito. Casar naquela época foi realmente uma necessidade. Na época pra mim foi uma grande saída porque a família me acolheu. A família me deu o primeiro impulso da vida. Foram eles que me ajudaram a começar minha vida de casado. E logo em seguida comecei com meu primeiro açougue.

TRAJETÓRIA PROFISSIONAL
Trabalhei no Frigorífico Macuco um período curto. Um ano, um ano e pouco. Depois comecei em um açougue na Vila Industrial como arrendatário. Trabalhava comissionado com o dono do açougue. Depois de 30 dias ele veio me oferecer e eu comprei o açougue pra pagar em parcelas e ali comecei. Com meu conhecimento, com a minha técnica, desenvolvi o trabalho e fui progredindo. Era o açougue São Marcos. O nome é do meu filho mais velho. A Vila Industrial é um bairro pacato de aposentados. Havia um frigorífico na época que estava praticamente fechado. Havia o matadouro municipal também. Era centro de Campinas, praticamente. Um dos bairros centrais. E quando comecei, foi desativado o matadouro municipal e o frigorífico. Eu fiquei praticamente sozinho no bairro, com aquele pessoal de poucos recursos, mas me acolhendo. Fiquei 14 anos trabalhando lá. Construí a minha vida, um grande patrimônio.

COMÉRCIO DE CAMPINAS
A Vila Industrial era um grande esteio de Campinas, vamos dizer, o berço de Campinas, porque Campinas praticamente nasceu na Vila Industrial. Os filhos e netos foram pra outros bairros, mas nunca abandonaram. Então fui fazendo certo volume de conhecimento familiar e eu trazia os clientes de outros bairros, os filhos, netos, bisnetos, primos, sogra. Com o meu conhecimento técnico com relação ao trabalho fui me desenvolvendo. Meu açougue era na Vila Industrial, mas na verdade eu atendia Campinas. Nunca morei perto do meu estabelecimento. Talvez seja o caso de não querer misturar as coisas, trabalho e casa. Eu morava no Parque da Figueira. Logo que me casei, meu sogro me deu uma casa mobiliada. Hoje o Parque da Figueira é o Jardim Nova Europa. Normalmente, eu ia trabalhar de ônibus. O comércio de bairro, antigamente, fechava meio dia, uma hora e depois abria só às cinco horas da tarde. Depois se trabalhava mais um pedaço. Até hoje o pessoal de bairro ainda trabalha nesse sistema. Fecha três ou quatro horas no meio do dia. Era o tempo de ir almoçar, ir ao banco, essas coisas. Abríamos normalmente às sete horas, oito horas e íamos até meio dia, treze horas e encerrava. Depois passava aquela pausa do almoço e voltava às dezessete horas e normalmente pra ficar até as dezenove, vinte horas, por aí. Era o ritmo do interior. Hoje não. Hoje os nossos bairros estão desenvolvidos. Existem serviços de banco, centralizou tudo. Então o comércio está quase virando vinte e quatro horas. Naquela época, o comércio era meio pacato. O comércio era uma mercearia, uma vendinha, uma padaria e pequenos negócios como bares. Na Vila Industrial era assim. Havia também uma feira às quintas-feiras, na Rua 24 de maio.

CLIENTES
Aprendemos a dar às pessoas um bom tratamento. Ter sempre um bom relacionamento com o cliente, tentando lhe dar sempre o melhor e fazer com que se sentisse à vontade. Para que ele levasse realmente uma coisa que fosse consumir, de qualidade, com responsabilidade e de gosto. Assim ele tinha o prazer de retornar e indicar para os amigos.

TRADIÇÕES
Antigamente, no domingo havia as reuniões de famílias. Todo mundo tinha um franguinho, um macarrãozinho, um guaraná. Vinham os filhos, os irmãos, tios, faziam sempre na casa um do outro ou na casa da matriarca ou do patriarca. Então era aquela festança familiar. Depois vem a época de Páscoa, a época do Natal, passagem de ano. Isso era um marco: “Eu vou comer uma leitoa no Natal” Ou então: “Vou comer um cabritinho na passagem do ano.” Ou: “Vou comer um peru.” Hoje não. O Natal é praticamente todos os dias. Hoje é fácil. Se você quer comer uma leitoa, tem. Não é o meu caso, mas há várias lojas que trabalham assim. E mudou a mentalidade das pessoas. Se tem o momento, tem o prazer, então já vai e compra. Hoje não se compra mais na antevéspera, ou véspera do Natal. Compra-se em outubro, setembro e guarda no freezer. Então não tem mais aquela corrida, aquela loucura. Acredito que é próprio do consumidor, da própria situação da evolução dos tempos e que fez com que as pessoas ficassem mais práticas. Não deixar sempre pra última hora. É como aquela história: “Eu matei um boi e só tem dois filés mignon pra vender.” Antes, se você falasse: “Eu quero um filé mignon ou quero uma picanha.”, tinha que reservar. Hoje não. Hoje chega em qualquer loja, principalmente na minha (risos), e acha com certeza . Se você chegar lá: “Eu quero 50 quilos de filé mignon.” Eu digo: “Perfeitamente, de que jeito que o senhor quer?” É assim que funciona. “Quero de boi, não quero de vaca, quero um filé mignon desse tamanho.” E mesmo as picanhas. Então são várias facilidades hoje. Isso se deve ao consumidor. O consumidor transforma o comércio porque ele te motiva, ele te multiplica, faz evoluir, faz a receita aumentar. Se eu tenho certeza de que você vai vir, ou vai me ligar, que você vai querer a mercadoria, eu tenho que ter se quero me estabelecer.

RELIGIÃO
Volto a falar questão de disciplina familiar e religião. Eu nunca trabalhei na Sexta-Feira Santa. Nunca. Jamais abri minhas lojas. Meu feriado é Sexta-Feira Santa, Natal e Dia Primeiro do Ano. Embora para o comércio de hoje, tanto faz se é Sexta-Feira Santa ou domingo ou segunda-feira Hoje são diversas religiões que acreditam ou não acreditam. O consumidor acha que deve fazer churrasco na Sexta-Feira Santa. No meu açougue não compra nada. Ele pode ter comprado pra comer na Sexta-Feira Santa, mas no meu ele não compra nada nesse dia devido ao respeito. Para mim é pecado comer carne. É uma falta de respeito. Eu vejo dessa forma. Se eu não dou o direito pra você ir no meu açougue na Sexta-Feira Santa comprar uma picanha, poderia comprar peixe, mas eu abro precedente pra aquele que quer comprar uma coisa que eu não quero vender. Esse ano, por exemplo, o nosso comércio abriu, o mercado abriu, o meu ficou fechado.

COMÉRCIO DE CAMPINAS
O meu relacionamento com os outros comerciantes é bom, mas como nós vendemos as mesmas coisas, se eu puder vender mais barato que ele, eu vou vender e vice-versa. Então os comerciantes são amigos, mas se ele puder vender o peixe dele na frente do meu, ele vende (risos)

TRAJETÓRIA PROFISSIONAL
Não tenho o estudo completo. Depois eu cresci muito e comecei a entrar em lugares altos. Então eu precisava ter certa estrutura. Eu entrei e meu patrimônio, de repente, caiu. Acabou. Mas isso foi por causa da ambição. A própria circunstância, às vezes, que leva uma pessoa a adquirir alguma coisa que ela não tinha necessidade. Aconteceu comigo. Eu tinha o meu açougue que era enorme. Reformei e fiz do jeito que eu queria. De repente, apareceu outro negócio, uma indústria pra mim. Depois disso apareceu outra coisa, que eram restaurantes similares e eu fui agregando tudo isso sem a estrutura do conhecimento financeiro. Nos últimos anos, em 82, mais ou menos, eu comecei a me perder. Eu tinha esse açougue na 24 de Maio, tinha um outro frigorífico que era no Parque dos Eucaliptos e tinha um outro negócio que era um restaurante que atendia indústrias e refeições coletivas. Era um negócio enorme, tinha uma média de 70, 80 funcionários. Com esse grande salto, eu precisava de alguém pra me ajudar. Todos que eu tentei me passaram a perna e eu caí, infelizmente. E recomecei.

CLIENTES
Aí entra o grande conhecimento técnico e a satisfação do cliente e do fornecedor. Porque eu conheço você, sei o seu gosto, você gosta do filé mignon cortado a medalhão; ele já gosta de um strogonoff. Outro gosta de um filé pra fazer um fondue. Cada é um, um diferencial. Cada cliente precisa de um tratamento diferente. Na alta escala, falam: “Eu quero dez peças de filé mignon de boi.” Eu não posso te mandar ao contrário, eu quero você como cliente, eu tenho que fazer aquilo que você quer. E hoje, o próprio consumidor é o grande responsável por fazer com que você tenha tantas coisas no mesmo instante pra poder atender a todos. Eu prezo essa relação “olho no olho” com o cliente até hoje, com grande respeito. Porque eu falo sempre para os meus colaboradores: “Cada cidadão que chega aqui é o nosso patrão. Nós devemos respeito a ele, tratamento especial.” Isso nos leva a fazer com gosto e satisfação.

PRODUTOS
O grande mercado se tornou exigente. A televisão, a mídia, dá uma receita, tipo carne de jacaré. Onde você vai achar? Onde você vai achar um javali ou talvez um leitão a pururuca, um coelho, uma perdiz, uma codorna ou um faizão? Uma carne de vitela? Na televisão são vários programas e sempre tem alguma coisa diferente. Não é só a carne bovina ou a carne suína ou de aves. O grande mercado é isso aí: você ter a mercadoria e o consumidor saber que em tal lugar tem. Mas a carne que sai mais é a bovina. Hoje para o churrasco se usa picanha. O grande conhecedor de carne, o churrasqueiro já leva uma fraldinha ou uma maminha. “Ah, eu quero um churrasco demorado.” Ele leva uma costela, uma ponta de agulha, uma bisteca ou um t-bone. Carne vermelha. Falar: “O que vai ser? Um franguinho, uma coxinha, uma asinha, uma coxa desossada.” Parte pra outro campo, que é uma costelinha de porco, um barbecue, uma panceta, tal. São determinadas coisas que, vamos dizer, o consumidor viu e ele quer. E ele vai levar e vai propagar que ele comprou ali. Hoje no mercado, o carneiro está vindo com uma boa aceitação. Até então as pessoas não conheciam. “Carneiro? Não, carneiro é um bicho sagrado.” Mas ele é alimento. Então nós deixamos esse lado e estamos consumindo carne de ovelha ou carneiro. Hoje se fala: “O churrasco não é mais só a carne de boi. São várias opções.” Você faz um churrasco na sua casa com boi, porco, carneiro, um pouquinho de cada coisa. E o nosso tratamento procura ser sempre diferencial. O que não é feito na loja, a gente procura fazer. Eu como bastante carne. Como carne até crua, se for o caso. Pra mim todas são excelentes. Carne tem que conter um pouquinho de gordura, normalmente seria um bife de alcatra ou uma carne de panela, ou a paleta ou a capa de filé, uma coisa assim. O próprio tempo nos faz apreciar a carne. Existem dias que você não está a fim de comer uma carne vermelha. Você vai no açougue pra comprar: “Vê uma bisteca de porco.” Mas você chega lá e vê um contra filé bonito, uma gordurinha, tal, um contra filé alto, rosadinho, os teus olhos fazem você mudar de idéia na hora. Ou você leva os dois, ou você leva o contra filé, ou alcatra, ou talvez uma carne de panela ou uma outra coisa assim, similar. Você não leva aquilo que você foi buscar. Então está na linha dos olhos.

CONSUMO
O cliente compra com o olho. Hoje, infelizmente, nós somos consumistas. Você tem que chegar em um lugar e deparar com alguma atração, com alguma coisa que você não tinha visto. Chegando lá você fala: “Puxa vida Que carne linda. Olha que carne maravilhosa. Olha isso, olha aquilo.” Você acaba comprando na linha dos olhos. Mesma coisa o cliente do mercado. Por que existe o mercado? O mercado é também auto-serviço. Você vê tudo em auto-serviço, em alta escala, na linha do gol, na linha dos olhos. Você chega ali, você fica abismado com tanto tipo de mercadoria. Às vezes, uma mercadoria de quatro ou cinco firmas, com vários preços. Você pesquisa ali na hora, mas você não foi lá pra comprar aquilo e você acaba comprando. A venda mexe com os desejos das pessoas e a satisfação do consumista. Às vezes, ele comprar tudo isso. E, às vezes, ele acaba se iludindo em comprar.

COMÉRCIO DE CAMPINAS
No começo tínhamos oito funcionários. Chegou a quinze. Hoje trabalhamos em seis. Então são fases. Campinas era açougue e mercado. Hoje existem os supermercados, os hipermercados, os 24 horas, os shoppings. Então o que aconteceu? Campinas diversificou, cresceu. Ficou exigente demais. Então não tem necessidade mais de você me ligar e falar: “Guarda uma picanha pra mim que eu vou buscar antes que acabe.” Mentira. Não vai acabar, não tem problema. Qualquer lugar que você vá, se o padrão do comércio é bom, ele tem estoque. Então o cliente chega lá e sempre tem. Você chega lá e quer um filé mignon pra fazer um strogonoff. Eu posso dizer: “Olha, eu não tenho um filé mignon, devido essa situação assim, assim, mas vou te arrumar uma outra carne.” Pode haver uma explicação técnica, um conhecimento profissional e você leva. Você não vai apanhar da mulher (risos).

FALTA DE CARNE
Aquela época de falta de carne, o grande trunfo era a inflação. Existe muita carne, preço barato. Inflacionou pra sumir. Sumiu a carne. Tivemos em 76. Tivemos em 86, 72. Não sei quando foi a última, acho que foi em 86, quando houve aquela situação. A carne era um “x”, não tinha carne. Os pecuaristas não vendiam para os frigoríficos, o frigorífico não podia vender pra fulano, mas existia uma pequena vazão. Essa pequena vazão era dos grandes. Eles ganhavam muito vendendo essa carne no câmbio negro, a preço muito caro. Muito caro não, a carne no preço real. Hoje se fala da qualidade do boi: boi de pasto, boi rastreado, boi confinado. Cada um tem um custo, então o preço da carne teria que ser diferente. A mesma coisa que falar: “Fui lá e comprei carne de vaca e comprei carne de boi, mas qual a diferença?” Não, é tudo carne bovina. Mas quem conhece sabe que está errado. Comprei contra filé, paguei 12 reais e comprei contra filé, paguei 6. Um é o feminino, de qualidade inferior de carne, que você satisfez o financeiro. E o outro comprou qualidade e pagou aquilo que é de gosto. Na época que não tinha carne foi feito um tabelamento. Se meu comércio estivesse aberto, eu teria que vender toda a carne naquele preço. Então as portas eram fechadas ou abriam com outras coisas que não estavam na tabela e seriam vendidas no preço do câmbio. Se você queria uma carne diferente, você teria que pagar por fora.

CONSUMIDOR
Hoje são muitos comerciantes e muito consumidores, mas todos correm atrás do financeiro, do custo. Se você vai comprar uma carne, você tem uma receita pra gastar. Você precisa comprar dez quilos de carne, mas o teu dinheiro no meu açougue só compra cinco quilos, então você vai bater em outra porta. Vai pesquisar. Você acaba chegando em um que você compra dez. Mas depois você vai se deparar que foi enganado. Que você comprou gato por lebre, não é mercadoria que você está acostumado a comprar. É inferior, a carne é mal limpa, mal trabalhada, talvez de péssima qualidade. É o que está acontecendo hoje. O barato sai caro, se a pessoa não ficar esperta. Por que o fulano vende mais barato? Se a carne real custa 12 e ele está vendendo a seis ou cinco ou quatro? E está dando prêmios ainda? Isso está acontecendo em Campinas. O consumidor que conhece a mercadoria e vai em um lugar desses, ele vai uma ou duas vezes. Agora se ele é enganado, nunca mais volta. E pode ter certeza: quem entra em uma loja e é cliente, traz dez amigos. Se vai embora, talvez leve trinta com ele.

MODERNIZAÇÃO
O maquinário é o mesmo. Mudou o quê? O sistema com a carne. Se você voltar ao passado você vai ver que antigamente os açougues pegavam as carnes e cortavam pedaços. Então, as mulheres em casa, as mães, as avós, tinham que lidar com aquilo, um trabalhão. Com o passar do tempo começou a se cortar carne em peças, sem osso. A carne tipo alcatra. Porque alcatra é uma carne que se divide em três, quatro, cinco partes. Aí você fala: “Mas eu conheço alcatra.” Mas existem os cortes. Aí você fala: “De onde saiu a maminha? De onde saiu a picanha? De onde saiu o miolo da alcatra? De onde saiu a rolha? De onde saiu uma castanha que tem em cima da picanha?” Você fala, mas tudo isso era tudo comprado como alcatra só. Coxão mole também. Antigamente, cortava coxão mole no núcleo, ele trabalhava com ante-costo, tudo, com aranha, tudo aquelas carnes. Hoje em dia você fala: “O que é aranha?” Aranha é o núcleo da carne que era uma parte do coxão mole, que ela, por causa da técnica de desenvolvimento atual, só ela é comprada. Uma carne pesa 200 gramas. Perinha do coxão mole, a capão do coxão mole, quer dizer, o meio do coxão mole. Então você fala assim, como é que ainda hoje o cliente chega no açougue e fala: “Hamilton...” E eu sei que você vai comprar carne pra trinta dias. Então você sabe, você traz a sua lista de compras, você tem carne vermelha, carne branca, carne suína, lingüiça, embutidos e tal. Então a sua esposa fez o cardápio seu e diz que vai precisar de dois quilos de alcatra em quatro pacotinhos, com tantos bifes. Eu preciso de carne moída, dois quilos, em tantos pacotinhos. Preciso de um lagarto. Preciso de uma bisteca, de um lombo, de um pedaço de pernil, de uma costelinha. Preciso de um filezinho de frango, uma coxa, tal e vai embora. Preciso da lingüiça, do bacon, tudo isso você vê lá e passa pra mim. Ou por telefone ou você está com tempo, no domingo, sem fazer nada, você vai lá e aguarda que vamos fazer o serviço para você. Tem diferencial? Tem. Qualquer lugar faz? Não. Então, hoje, o que eu faço no meu açougue, o meu vizinho passa a fazer, o outro passa a fazer também e assim por diante. Por quê? Porque todo mundo quer o prático, o fácil, o maleável. Você chega em casa não vai dar trabalho pra sua esposa ou mesmo pra você. Chega lá, já está com a etiquetinha, você vai lá e põe no freezer. Está sabendo do cardápio dela, o segmento das carnes que ela vai tirar do freezer. E assim vai por diante. Imagina que você vai lá me comprar dez quilos de carne: “Eu quero três de boi, dois de porco, cinco de frango, dois de lingüiça, não sei o quê.” Chega lá quatro, cinco pacotes, aí sua esposa vai ter que repartir as porções pra guardar. Eu acho o cliente fiel. Claro, se ele está em condições financeiras de ir comprar, ele vai. Se não está... Você entra no meu açougue só pra comprar frango. Você chega no Extra, por exemplo, tem uma promoção, um kit de frango inteiro, sabe o que vai acontecer? Você vai comprar o frango lá. Mas tem essa grande percentagem da freguesia que deixa de ir no mercado, deixa a carne lá do mercado e vai comprar a minha carne. Mas ele não vai comprar a carne do mês, vai comprar a carne, às vezes, do domingo, final de semana, pra um churrasco. Esse é daquele cliente que não pergunta quanto é, porque ele sabe o diferencial da carne de boi, etc.

DIFICULDADES
A maior dificuldade que enfrentei no comércio foi a lealdade do cliente. Você acreditar que ele veio na segunda e volta na terça e na quarta-feira. Você se abastece, espera e ele não vem. Então você fala: “Puxa, eu imaginei um movimento.” Hoje, como já temos tanto tempo, já temos uma linhagem... Se comprei carne pra abastecimento e acabar hoje, segunda compro mais. Então a gente leva no limite.

FORMAS DE PAGAMENTO
O cliente tem domínio em cima do comerciante. Existem pessoas de todas as espécies. O cara que é aproveitador, o cara honesto e o cara - como se diz - sacana que vai te ludibriar, te passar pra trás. Então, hoje, como a história é “olho no olho”, você vai ver no dia-a-dia. O cara chega e abre um crediário, como? Se você compra carne comigo há um mês, dois meses, talvez três meses. Um dia você ficou me devendo 50 reais. Depois passou um tempo você vem e me paga aqueles 50 e compra mais uma. Depois, passado mais um pouco, ele fala: “Vou levar pra ficar aí pendurado. Depois eu venho e pago.” No fim isso nunca é saudável. Algum dia você vai deixar de ir ao açougue, porque você não tem como pagar e você não vai ter como comprar a carne. Aí você vai comprar no vizinho ou vai mudar de lugar. Sabe quem facilitou? Fui eu. Com as vendas de cartões, um crediário que temos com as redes, isso diminuiu um pouquinho. Mas como são 20 anos existe uma grande quantidade de pessoas não cadastradas que compram pra pagar depois. As pessoas estão sempre ali. Mas vender fiado hoje é um grande risco. O grande golpe ainda é do cheque. Quando existia hombridade e respeito, o cheque era bom. Depois que todo mundo passou a ter um talão de cheque, emitir cheque que o banco não paga, então acabou o respeito. O comércio trabalha com as redes Visa, Master, Dinners, Redeshop; todas essas linhas são viáveis.Nós pagamos por isso, mas é uma venda garantida.

SEGREDO
Eu sou vidente com uma história real. Hoje eu sei que existem muitas técnicas novas com relação a lojas que abrem, com relação ao patrão estar presente ou não. Ele monta pontos de venda que nem os funcionários sabem quem é o patrão. Que isso traz certa segurança com relação a vendas, à crédito. Então, embora ele adote um sistema funcional, o companheirismo, essas coisas ele não tem. O patrão é fulano, o gerente é ele, os encarregados são aqueles, braçais, serviçais são esses e pronto. É uma coisa fria. O gerente tem que ser muito ativo, porque senão a gente fica frio. É um lugar que você vai porque você precisa comprar alguma coisa, senão você não vai. Se não precisar você não volta lá.

MUDANÇAS
Nessa jornada, eu tenho certeza de que se tivesse de abrir alguma coisa, eu abria na forma do comércio atuante. Porque ele é muito desgastante, sacrificante, o meu sistema, do olho no olho, de abrir e fechar, de acompanhar, de comprar e vender, de você estar ao par de todas as situações, de cada consumidor, das famílias, das pessoas.Hoje você só vive para o comércio. Porque se tem uma vida muito cansativa, desgastante. Levanta às cinco horas da manhã, acorda, prepara, seis e meia você já está ali. Passa o dia inteiro, 12, 13, 14 horas, almoça ali e está ali. São anos.

LIÇÕES DO COMÉRCIO
Da minha família, eu tenho meus filhos e nunca queria que eles trabalhassem no meu segmento. Eu queria que eles fizessem uma boa faculdade, talvez um bom comércio... Mas, infelizmente, eu não consegui tê-los da forma que eu queria. Hoje eu tenho três filhos que trabalham comigo, duas filhas e um filho, que eles vão passar o resto da vida e não vão fazer o que eu faço, da forma que eu faço. E os outros estão tentando fazer e não vão conseguir por causa do respeito e as condições da disciplina que o comércio precisa, da forma que eu toco.

MEMÓRIAS DO COMÉRCIO DE CAMPINAS
Nós estamos todos aqui de passagem. Alguém amanhã vai ter que falar: “Olha, eu conheci aquele senhor.” Assim como várias pessoas que vão assistir a esse vídeo. Podem ter acesso e falar: “Eu conheci e convivi com ele.” Então, é uma boa iniciativa. Pra mim é uma satisfação enorme, um presente de Deus ter dado essa entrevista.

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